terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

KINDRED - LAÇOS DE SANGUE (de OCTAVIA E. BUTLER)




     Se não enxergarmos o que é tido como diferente presente em todas as áreas da sociedade o encararemos como um erro, onde apenas a bolha onde vivemos será percebida por nós como verdade absoluta; por isso eu digo: Representatividade é tudo!

   Mas não é a simples presença física de pessoas de diferentes cores, opções sexuais ou religião que garante o rompimento da bolha onde nos incluímos, mas a possibilidade de se criar empatia a ponto de nos reconhecermos nas pessoas de aparência e opções diferentes de nós mesmos e nisso, a cultura como um todo tem um papel essencial, mas em especial o cinema e a literatura em suas facetas tidas como pop. Tudo isso talvez seja  uma verdade quase intuitiva, mas que ficou mais clara para mim, quando me deparei com uma obra de sci-fi clássica, que utilizando de clichês de ficção científica e fantasia, me entregou uma mensagem poderosa sobre os males que o preconceito cristalizou em nossa sociedade, em uma trama fruto da mente de uma pessoa que viveu muitos desses males.

    Pois hoje falarei (muito por cima) dessa obra, ou melhor, desse livro que se enquadra perfeitamente no seleto grupo dos “rompedores de bolha” e que me conquistou desde seu prólogo. Trata-se de “Kindred - Laços de Sangue”, um clássico da escritora afro-americana Octavia E. Bluter, que depois de quase quarenta anos de seu lançamento original, finalmente chega o Brasil pela editora Morro branco, me prendendo em suas páginas não só pela sua mensagem dura mas necessária, quanto por sua escrita refinada e ágil.

  
   O livro conta a história de Dana, uma escritora, que após se mudar com o marido Kevin (também escritor), para a casa nova, se vê vítima de um misterioso fenômeno de viagem temporal, retornando para a Baltimore escravagista pré-guerra civil americana, uma época nada fácil para uma mulher negra como ela (principalmente uma que possua educação e espírito). Conforme o fenômeno vai se repetindo Dana descobre que o mesmo é fruto de uma misteriosa ligação com um antepassado, seu tataravô Rufus Weylin, filho de um proprietário de escravos, que quando sente sua vida ameaçada a invoca para que essa o ajude. Além do estranhamento da situação, Dana viverá o dilema de ter que defender seu antepassado, que é fruto da época de abusos onde nasceu, para que ela mesma tenha seu nascimento assegurado, enquanto é obrigada a testemunhar a abertura da feriada que a escravidão causou e que o preconceito e a ignorância não deixaram cicatrizar até os nossos dias.
  
      Esse livro me causou inúmeras sensações, a maior foi a da descoberta de Octavia E. Bluter e todo seu talento. A autora, não vulgarmente chamada de A grande dama da ficção científica, realmente me impressionou com sua forma de escrever limpa e pé no chão (e em um livro de sci-fi!), conseguindo transmitir não só toda a dor do período escravagista de maneira sutil, como a própria aflição de seus personagens negros do século XIX, que transitam no livro como não pessoas, posses de outros e fadados a passar o resto de seus dias contendo seus sentimentos e indignações; mas também, nos entregado na sub-trama, a cicatriz social que a  escravidão deixou ao apresentar no tempo atual (1976) uma mulher negra  casada com um homem branco (Dana e Kevin), que sofrem o desprezo de suas famílias devido a esse casamento, ainda nada comum nos EUA dos anos mil novecentos e setenta, indicando, sem precisar escrever nada que aprofunde a situação, a marca de um racismo, mais velado do que explicito, que continua presente até os dias de hoje; sem falar da maneira totalmente realista que a autora descreve o relacionamento e rotina do casal, nos tornando cúmplice de seus segredos e testemunha de seus sentimentos.

     A leitura também me fez refletir quanto a pouca quantidade de autores não-brancos e não-masculinos que eu posso dizer que li e o que eu perdi com isso. Fora os clássicos como Machado de Assis ou Alexandre Dumas e “Batle Royale” de Kouachum Takami, quase todos livros da minha lista são de Europeus ou Euro-americanos e no que se trata de mulheres não é muito diferente, mulheres negras então, não havia nenhuma. Octavia E. Bluter veio para mudar isso ao se apresentar para mim, como um desses autores que quando terminamos de ler uma de suas obras, sentimos vontade de ler todas, nos induzindo à representatividade através do puro talento.

    A história da autora e a consciência da sociedade onde vivia e que lembra um pouco como enxergo a nossa, sem contar o fato de, pela primeira vez, tive a oportunidade de ter contato com uma obra de ficção científica escrita por uma pessoa da mesma etnia que eu, realmente me tocou, pois como disse no início, representatividade é tudo! Mas esse fato sobre “Kindred” que é importante para mim e para poucos, se encontra além do livro, dentro dele há uma história de drama e aventura, desenvolvida de maneira magistral que fala sobre como somos adestrados para aceitar os abusos e não perceber muitos de nossos próprios privilégios. Isso acontece através da relação de Dana e Rufus, a primeira uma mulher negra educada e culta do século XX, se vendo exposta a todo tipo de violência do período da escravidão e que vai se quebrando frente a esse novo mundo; o outro, uma figura do século XIX, que, conforme Dana vai retornando no tempo e acompanhando seu crescimento, vai se corrompendo e se mostrando cada vez mais consciente de seu papel.

     
Octavia E. Butler (1947-2006)
 
É por meio de Dana e Rufus, e suas interações com as pessoas em sua volta e como estas relações vão mudando com o tempo, que a autora nos demonstra a força que o mundo que nos rodeia tem sobre nós. A relação com o poder é inversamente proporcional no que tange aos dois personagens e, enquanto Dana vai se acostumando com as ordens, por mais que se convença de que é para o bem de seus antepassados e seu próprio, se quebrando no processo, ao ponto de terminar o livro transformada em outra pessoa; Rufus vai se acostumando com sua posição de poder e privilégio e mudando de um menino compreensivo e sensível, para um adulto egoísta, que não enxerga as pessoas diferentes dele como outros seres humanos e se vê como superior. O Alvo desse egoísmo e que acaba se tornando um dilema para o próprio Rufus é, Alice, uma filha de escravos, que ele nutre uma paixão desde jovem e cuja relação se equilibra entre sentimento verdadeiro e coisificação; Alice também acaba por sofrer devido a influência de Dana, que sabendo que descende desta com Ruffus, ajuda o mesmo a conseguir o que ele deseja, transcrevendo a amarga existência de um indivíduo que é desumanizado sem chance de ser ouvido ou ter opção, restando o final nada feliz para Alice e a Justiça (ou vingança) para Rufus.

    A Autora ainda inclui, em uma das regressões no tempo, a presença do marido da protagonista, que serve como “olhos brancos bem intencionados”, que enxergam as barbaridades da época e se indigna, mas, por não possuir a mesma ligação com a situação que a protagonista, acredita que as coisas poderiam ser ainda pior. De forma genial, Kevin está lá para representar os brancos que são despidos de preconceito (e ele faz isso se pondo em risco muitas vezes), mas não possuem a mesma história de vida de quem sofreu o preconceito na pele; algo tão comum como o próprio preconceito e que, no livro, deixa profundas cicatrizes ao personagem quando este volta para seu tempo natal.

     Eu poderia falar durante páginas e mais páginas sobre “Kindred”, mas preferi não me aprofundar mais para não acabar com a experiência de ninguém, o que posso dizer  é que este é um livro essencial para quem é, além de fã de fantasia e ficção científica, amante da literatura. Uma obra de escrita ágil, personagens fortes e marcantes, questões amplamente relevantes e que ainda hoje são debatidas. Fruto de uma mente a frente de seu tempo, que usando os conceitos Pop levou a todos um retrato da ferida que legitimou o preconceito racial nos EUA (e no mundo), assim como, por meio de seus personagens, mostra a facilidade de se quebrar frente ao poder, ou não enxergar seus privilégios. Um livro que me fez sentir mais do que satisfeito, como me presenteou com outro autor para ler toda obra; uma mulher que, depois de 424 páginas, posso dizer que me representa na ficção científica e como bem se sabe, representatividade é tudo!




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