sábado, 2 de janeiro de 2016

A MULHER QUE ESCREVEU A BÍBLIA - ESQUERDA REWIEW

Me formei em 2015! Agora sou bacharel em administração (antes tarde do que nunca!) e, quando estava finalizando o TCC, em meio a dados que se acumulavam em umas três montanhas aguardando utilização, prometi que assim que a banca avaliadora me liberasse faria uma revisita aos livros, filmes e quadrinhos que me marcaram de alguma forma (prometi também ler todos os livros do “Game Of Thrones”, mas não sei se tenho tempo para tanto.).
Resolvi começar com “A mulher que escreveu a bíblia” de Moacyr Scliar, talvez pela onda crescente de feminismos cada vez mais em voga e que eu acredito ser extremamente necessária (apesar de não apoiar nenhum evento extremo) ou talvez por ser apaixonado pela obra do autor, o qual eu prometi a muito tempo ler todos os livros e nunca saí dos quatro que possuo (considero assim essa releitura um homenagem ao escritor). Pois bem, seja lá por qual motivo conhecido apenas pelo meu subconsciente, “A mulher que escreveu a bíblia” foi o livro escolhido e, senhoras e senhores, que livro bacana!
Não! Não vou me atrever a avaliar a forma de narrativa de um imortal da academia brasileira de letras, tão pouco questionarei qualquer mérito de um livro premiado com o Jabuti, meu interesse é falar um pouco sobre a experiência divertida de ler Moacyr Scliar e frisar os pontos que me colocaram um sorriso no rosto durante a leitura, para que, quem sabe, eu fomente em pelo menos uma pessoa o desejo de visitar o maravilhoso universo Scliariniano.
capa da versão de bolso

Qual a história do livro?
Ajudada por um ex-historiador que se converteu em “terapeuta de vidas passadas”, uma mulher descobre que, no século X a.C, foi uma das setecentas esposas do rei Salomão ( a mais feia de todas, mas a única capaz de ler e escrever), Fato inusitado que encanta o rei, que a encarrega de escrever a história da humanidade, tarefa árdua, que uma junta de escribas se dedica a anos sem sucesso. Com linguagem que transita entre a elevada dicção bíblica e o mais baixo calão, ela conta sua trajetória, desde o tempo em que não passava de uma solitária e feia filha de um obscuro chefe tribal. ( transcrição quase que idêntica à contracapa da minha edição da Cia das Letras)

Gostei muito da protagonista. Seus medos, sonhos e anseios são muito bem desenvolvidos e o fato dela não ter o nome dito em nenhum momento, me parece uma ferramenta para gerar catarse com o leitor, o que dá extremamente certo, somos um pouco nós que estamos ali vivendo seus medos e sonho, e, nos preocupando com a situação de quem ela se importa. Isso torna a personagem muito real, muito contemporânea, tanto que, embora que se trate (até certo ponto) de um romance histórico (é? sei não!) ambientado no oriente médio mil anos antes de Cristo, a feia (como se auto intitula a protagonista) é extremamente moderna e decidida. Esse fato remete a própria história do livro que, conforme citado anteriormente, é como se fosse o texto de uma mulher de nosso tempo narrando sua vida passada; utilizando isso, o autor se permitiu narrar a história sem a necessidade da utilização de termos que remetessem a época ou se prender a apresentação mais aprofundada da sociedade e ambiente, podendo partir logo para a construção da história, tanto que sobram momentos onde os personagens se tratam por “cara” e acham as coisas “legais” isso dá o tom do humor sutil do livro que nos conduz de forma suave pela leitura.
Ainda sobre a protagonista, o fato de ela ser uma personagem mulher escrita por um homem e que me parece tão feminina (e quando falo feminina, falo humana e não perfeita) é o que realmente mais gosto no livro. Talvez pelo fato de as poucas personagens femininas da minha infância e juventude (Dostoievski, muita história em quadrinhos e filmes dos anos 80 e 90) serem apenas muletas pouco exploradas e esse livro quebre esse paradigma de forma espetacular, apresentando uma mulher inteligente, que sabe de suas limitações e que busca ferramentas para contorna-las e que principalmente seja humana antes de mulher. Ela manipula, utiliza de silêncios para gerar expectativa, controla sua raiva, premedita suas atitudes; mesmo a índole da personagem que desde o inicio já é apontada como sendo boa, não há maniqueísmo e por vezes ela ultrapassa alguns limites para alcançar o que quer.
Quanto aos desejos da feia, há quem possa criticar o autor pelo fato dela ter o único objetivo de conquistar Salomão através do livro, voltando a velha mítica de que as mulheres só agem tendo os homens como foco. Mas eu fico inclinado a discordar disso, a força da personagem está em realizar o que nenhum homem ou grupo de homens conseguiu anteriormente, a transcrição (de redação carismática) das histórias “sagradas” e se o plano dela é arrastar Salomão para sua cama isso não diminui em nada o seu trabalho ( além do mais o corpo é dela e suas regras também).
Aquele humor...
Outro fato marcante na leitura são os personagens periféricos da história, como o pai da feia, que ela descreve como mulherengo e ausente, coisa que Moacyr Scliar consegue transmitir quando descreve os olhares pretensiosos e silêncios obtusos do patriarca do deserto, fato que se repete quando ele descreve o primeiro amor da protagonista, que só é citado pelo epiteto de “pastorzinho”, a quem nos é mostrado, pelo olhar da protagonista, como um simplório e limitado, no entanto gentil jovem sem perspectiva o qual vamos acompanhando em todo o seu azar durante  o livro; mas quem realmente me colocou um sorriso no rosto, foi Mikol, uma das concubinas de Salomão e que fica presente no livro por não mais de três páginas, mas pela qual o autor consegue transmitir o significado da amizade verdadeira nascida da cumplicidade. O trecho onde a feia fala sobre o conhecimento de Mikol sobre sinais gráficos é tão doce e de detalhes tão bem apresentados que eu tenho de transcrever uma parte aqui:

“Ela não sabia ler nem escrever, mas conhecia todos sinais gráficos, o ponto, a vírgula – que sempre a deixava pensativa – a interrogação e a exclamação, que lhe provocavam barrigadas de riso. E o travessão: também conhecia o travessão. Contudo, gostava mesmo era das reticências; sabia que aquilo era prazer a pessoa, com olhar perdido, pensar sobre a vida, sobre o mundo...
- “Sim, nas reticências talvez haja um lugar para mim...” (acho que perfeição não define essa parte do livro.)

Não posso terminar de falar sobre o livro sem fazer uma pequena comparação entre este livro de Moacyr Scliar e os dois livros com a mesma temática bíblica escritos pelo autor Português José Saramago ( “O evangelho segundo Jesus Cristo” e “Caim”). Posso começar dizendo que não gosto da escrita de Saramago. Longe de mim depreciar o autor, até acho algumas partes de “Caim” bem divertidas, mas parece que o Autor português tem como único objetivo subverter os relatos bíblicos sem a vontade de escrever algo conclusivo que nos remeta a um olhar diferente da história conhecida. Em “O evangelho segundo Jesus Cristo” a trama se prende a momentos recorrentes de sexo entre Jesus e Madalena e parece vincular Lúcifer a religião islâmica quando cita como o anjo caído reza e descreve sua aparência, também não desenvolve muito dos personagens com potencial como Thiago (que é citado como irmão de Jesus, mas nada faz) e até perde tempo explicando eventos como a água com vinagre dada a Jesus na cruz para mostrar que os romanos não eram Tãão maus assim... um reflexo dos preconceitos do autor, e,  nisso o livro não engrena e se torna até chato. Em Caim, já temos uma narrativa mais rápida e é interessante porque foge da linearidade do tempo e isso é bacana, pois coloca o protagonista inserido em todos grandes episódios da bíblia, mas ao fim o autor comete o mesmo erro do que no livro anterior e dá um final que parece feito as pressas a história. Já em “A mulher que escreveu a bíblia” tudo parece mais redondo, tanto que o final, embora previsível pela situação que vai se desenhando, não decepciona e terminamos a leitura com um belo sorriso de satisfação, por sermos apresentados a outros pontos de vista e aprofundamentos. As  obras desses autores com esse tema, talvez tenham esse diferente impacto em mim devida a própria mensagem que eles tenham buscado transmitir nas entre linhas. Embora ambos fossem ateus (os dois já se foram) a vontade de diminuir a religião em Saramago era claramente observável, enquanto que Scliar, como Judeu, trazia ainda em si a religiosidade apenas como tradição, uma forma de carinho por suas origens, ,e o carinho gera mais frutos que a raiva (star War nos ensinou isso!). De qualquer forma, se eu precisasse escolher um para ler sobre o tema eu leria Scliar.

De qualquer forma eu quero dizer que valeu muito a pena reler “A mulher que escreveu a bíblia”, tive aquela mesma sensação que tive da primeira vez de surpresa e encantamento. Acredito que o Brasil deve redescobrir Moacyr Scliar, tanto através de seus livros quanto colunas e artigos, o cara era um gênio. Quanto a esse livro eu indicaria para quem está em transição entre leituras mais fáceis para contextos mais profundos, ele traz referencias de fácil acesso e um humor para todos, mas sem deixar de ser inteligente e ágil. Uma bela leitura e um livro para se destacar na estante e na memória. 

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